GEDEON ALENCAR EM ENTREVISTA

Entrevista publicada na Revista Eclesia, março de 2006

O pensamento crítico não é lá muito valorizado no meio evangélico. Pudera – em boa parte das igrejas, qualquer questionamento costuma ser visto como rebeldia. Por isso, pensadores como Gedeon Freire de Alencar nem sempre têm seu trabalho reconhecido no segmento. Graduado em filosofia, mestre em ciências sociais e diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos (Icec), além de presbítero da Igreja Assembléia de Deus Betesda, em São Paulo, Gedeon acaba de lançar um livro polêmico.
Protestantismo tupiniquim (Arte Editorial) é uma obra que analisa criticamente posturas e comportamentos da Igreja Evangélica nacional. Inclusive, algumas evoluções, como a mudança de atitude diante de manifestações artísticas e culturais até bem pouco tempo vistas como profanas.
Segundo Gedeon, muitas coisas que já foram consideradas pecaminosas pelos crentes de outrora hoje são vistas com outros olhos justamente porque nada tinham de espirituais ou carnais. “Esse juízo de valor nem sempre é apropriado. É o caso do rádio e da TV, que de malditos passaram a ser usados maciçamente para o evangelismo”, opina. Por isso mesmo, diz o pesquisador, é preciso analisar a teologia sob o ponto de vista contextual: “Embora os teólogos digam que teologia é uma produção divina, a verdade é que ela é uma produção humana adequada ao seu tempo”. O exemplo mais claro é a chamada teologia da prosperidade, que ganhou força nos anos 1970, acompanhando o processo de urbanização. “Ela só poderia florescer numa sociedade urbana e de consumo”, enfatiza. “É a legitimação do aburguesamento da classe média evangélica.”
No Icec, Gedeon leciona as disciplinas metodologia científica, filosofia, cultura e Evangelho e sociologia da religião. Além do seu trabalho docente, participa de diversas entidades acadêmicas, como a Associação Brasileira de História da Religião e a Rede de Teólogos e Cientistas Sociais do Pentecostalismo na América Latina e Caribe. Atua também como consultor e palestrante, sempre abordando a inserção do Evangelho nas questões sociais brasileiras. Nesta entrevista a ECLÉSIA, ele esclarece alguns pontos de seu livro e traça um panorama do modo como a fé evangélica tem influenciado a cultura nacional – e, em escala muito maior, como tem sido afetada por ela.

ECLÉSIA – Como o senhor define esse tal protestantismo tupiniquim, tema de seu livro?
GEDEON ALENCAR – Vou recorrer à definição que faço no fim do livro, que é a de um cristianismo brasileiro. E sendo brasileiro, ele é miscigenado, sincrético, pluralista e festivo, do jeito que o Brasil é. Ou seja, o protestantismo, aqui, não é melhor nem pior do que é o Brasil – ele está impregnado de miscigenação e sincretismo.

Então, a origem do protestantismo é sincrética?
Sim. O cristianismo, originalmente, é sincrético. Ninguém inventa a roda – ou seja, não existe religião pura. As festas judaicas, quando foram estabelecidas por Moisés, obedeciam ao ciclo agrícola. Eram festas que todas as civilizações da época tinham. Os mesopotâmicos tinham aquelas festas e os egípcios também, antes, durante e depois dos hebreus. A própria estrutura e o funcionamento do Tabernáculo tinham aspectos que templos de outros deuses da época também tinham. A diferença é que, no caso dos israelitas, havia uma revelação de um Deus específico e onisciente, mas a estrutura religiosa dos judeus, e aqui estou falando como sociólogo, era igual a qualquer outra. Ou seja, a religião tanto absorve costumes de sua época quanto influencia esses costumes.

Mas os evangélicos são críticos do sincretismo religioso.
Hoje, é muito fácil, e todo mundo faz isso, criticar a questão do sincretismo quanto a cultos afro. Uma das coisas que mais bato no meu texto é que essa nossa implicância com o culto afro tem muito mais a ver com o racismo subjacente. A gente absorve o folclore americano, o folclore europeu, o folclore de outros lugares. E esse folclore, só porque é de civilização branca e poderosa, não é pecado? Ora, veja as músicas dos nossos clássicos hinários. As músicas da Reforma Protestante, por exemplo, são do folclore alemão. Por que que eu posso cantar folclore alemão e não posso cantar folclore angolano? Para se ter uma idéia, um instrumento que foi sacralizado no mundo evangélico é o piano. O piano nasceu em ambientes, digamos, não tão santos. Ele apareceu primeiro nos bordéis, já que sua música é apropriada para danças. Agora, como veio a nós pelo viés anglo-saxão branco, foi divinizado. Por que o piano é santo e o atabaque é demoníaco? Então, essa nossa implicância protestante vem muito mais por viés racista do que teológico.

Os crentes, em geral, rejeitam as religiões afro por considerarem-nas demoníacas, dada sua inspiração em espíritos ancestrais e divindades ligadas à natureza. Na sua opinião, isto é manifestação racista?
É aí que está. Hoje, fazemos uma satanização da cultura afro como um todo. A gente não procura diferenciar religião afro de cultura afro. Religião afro, como qualquer outra religião, pode ser demoníaca. O protestantismo alemão na época do nazismo não era menos satânico do que a religião afro. E o cristianismo holandês na África do Sul, que legalizava o apartheid, era menos satânico do que os cultos de matriz africana? Toda religião tem erros, ora. Mas também tem acertos e belezas – e isso acontece tanto com as religiões afro quanto com o nosso cristianismo. Veja a musicalidade dos negros, a alegria que eles têm diante da vida. Suas danças são inspiradoras. E por que que eles são obrigados a celebrar Deus à maneira dos europeus e não à sua própria? Durante séculos, tivemos essa opressão contra os negros na África, e a transpusemos para o Brasil. Repito: é mais uma questão ideológica do que teológica.

Os evangélicos são avessos também a um dos pontos básicos da fé sincrética, que é a veneração de imagens...
Quando o texto bíblico dos Dez Mandamentos fala em adoração de imagens, a gente simplifica dizendo que trata-se das imagens de escultura e logo associa com os santos católicos. Mas o que é imagem e o conceito de idolatria? O ídolo é toda e qualquer mediação que se coloca entre você e Deus. Em alguns momentos das nossas histórias denominacionais, alguns líderes e membros de determinadas igrejas adoram muito mais a sua igreja e sua tradição do que a Deus. Cria-se todo um processo idolátrico, em que o indivíduo diz que a sua igreja é melhor do que as outras. Isso sem falar dos ícones, de algumas figuras do meio evangélico que têm um patamar de ídolo. Existem líderes em nosso meio evangélico que não pisam no chão. Ninguém pode aproximar-se ou falar diretamente com eles. Há quase um processo de veneração da personalidade do líder. Nesse sentido, tal comportamento é tão pecaminoso e satânico quanto qualquer outra forma de idolatria.

É possível dizer que existem ritmos santos e ritmos profanos?
Veja bem, todos os ritmos são do mundo. Eu acho uma profunda estupidez satanizar um ritmo e divinizar outro. O louvor a Deus não passa pelo ritmo, mas pela transcendentalidade divina e pela subjetividade humana. Um axé pode ser sensual, mas um blues, ou um jazz, também podem. O samba pode ser sensual, mas uma marcha também pode. Mas o que Jesus disse à mulher samaritana? Que os verdadeiros adoradores devem adorar ao Senhor em espírito e em verdade. O que Jesus quis dizer ali é que adoração não tem a ver com uma categoria de pessoas, não tem a ver com o local e não tem a ver com dias determinados. Ou seja, adoração é transcendentalmente acima de temporalidade e do espaço. Logo, se o reduzirmos à questão do ritmo, o louvor não passa por um determinado tipo de música ou dos instrumentos musicais utilizados – passa por um ideal de vida, que é muito mais sublime do que qualquer outra coisa.

O senhor acha que a cultura nacional tem influenciado a Igreja Evangélica?
Sim, e graças a Deus por isso. Nos primórdios do protestantismo no Brasil, a Igreja Evangélica aqui instalada não tinha nada a ver com a realidade brasileira. Quando a Igreja Anglicana chegou por aqui, no século 19, tinha toda sua celebração em inglês. A Igreja Luterana, da mesma forma – era toda alemã, tinha muito mais a ver com a sua raiz étnica do que com o Brasil. Já no século 20, tivemos a Congregação Cristã do Brasil, que até a década de 1940 só fazia cultos em italiano e cantava músicas em italiano. Até a Bíblia era em italiano. Isso só começou a mudar dapois da Segunda Guerra Mundial, porque tudo o que era ligado à Itália e à Alemanha – países que o Brasil combateu no conflito – passou a ser considerado suspeito. A partir dos anos 1950, contudo, as igrejas já nascem aqui com cara brasileira.

Mas a matriz evangélica adotada no Brasil é incontestavelmente de influência americana. Logo, essa dominação americana sobre a Igreja brasileira não acabou?
Aí, entra uma outra particularidade da cultura brasileira, e os evangélicos também estão inseridos nessa cultura. O Brasil hoje é um dos países mais multiculturais do mundo. E somos extremamente abertos a novidades, principalmente aquelas oriundas de nações mais desenvolvidas do que nós. Uma das características mais básicas da cultura brasileira é a imitação. O brasileiro adora imitar o estrangeiro, sobretudo o que vem dos Estados Unidos. E o gospel moderno, tanto na literatura como na música, é uma imitação do que se faz lá. Nada mais brasileiro que imitar o estrangeiro. Podemos dizer que temos uma Igreja brasileira, mas com cara americanizada. Além da americana, há outras influências culturais sobre a Igreja brasileira? Sim. Em muitas igrejas pentecostais brasileiras, está havendo um retorno a tradições e origens judaicas, que provavelmente vai dar o que falar. Isso tem uma carga ideológica e racista de sionismo forte, num mundo onde se acirrou muito a questão da luta religiosa, influenciada pela direita americana. Eu conheço igrejas em São Paulo que têm a bandeira de Israel no altar. Em outras, o pastor instrui os fiéis a guardar o sábado e a utilizar objetos rituais como o candelabro e outros utensílios do antigo Tabernáculo hebreu. Para quê isso? Uma coisa é você abençoar a geração de Abraão; outra é abençoar a atual nação de Israel. A nação de Israel hoje é a manifestação política de uma outra época, há um longo abismo desde os tempos de Abraão. Eu acho esse sionismo evangélico só traz problemas.

Por quê?
Eu que pergunto: por que certas coisas têm que ser resgatadas e outras não? Se é para obedecer ao Levítico na literalidade, precisaríamos fazer sacrifícios de animais e excluir as mulheres da liturgia. E é claro que não devemos fazer isso. Essa adaptação ao judaísmo não é conveniente para os crentes, pois como é que ficaria então nossa relação com o sacrifício de Jesus? Isso causa um problema teológico seríssimo.

E a Igreja brasileira tem influenciado a cultura nacional?
Sim e não. Um exemplo claro foi sua postura diante do golpe militar de 1964. No início da ditadura militar, todas as igrejas evangélicas, como batistas e presbiterianas, mandaram telegramas para o general Castelo Branco, um dos líderes do movimento e que se tornou presidente da República, parabenizando-o pelo golpe. Eles estavam certos de que aquilo era a direção de Deus, mas anos depois a gente viu no que deu. Com o presidente Collor e, mais tarde, com o próprio Lula, foi a mesma coisa. Qualquer manifestação contra ou a favor é uma manifestação secular, social. É uma inserção da Igreja nessa sociedade, ao mesmo tempo que pode ser uma manifestação espiritual. Há 50 anos atrás a Igreja satanizava o futebol; hoje, não. O futebol deixou de ser pecaminoso ou a igreja melhorou? Nem uma coisa nem outra. Futebol não deixou de ser futebol e igreja não deixou de ser igreja. No decorrer dos anos todos mudam, pois há uma adequação natural. Não tem como ser diferente.

Essa adequação não é prejudicial?
Para não tipificar de forma muito pejorativa a Igreja, vamos relacioná-la com o PT. O PT de 20 anos atrás era aquele grupinho coeso, de uma honestidade a toda a prova. Pobre, pequeno, com inimigos mil ao redor – essa é uma tendência natural do agrupamento social minoritário. Num grupo pequeno, seus inimigos são sempre exteriores. Na medida em que esse agrupamento vai crescendo, seus inimigos mudam. E aí começa aquela história de fogo amigo. Os maiores inimigos tornam-se os internos. Voltando à questão da Igreja, à medida que ela vai crescendo – e ela cresceu muitíssimo nas últimas décadas –, vai perdendo seu poder de influência.

O natural não seria o contrário?
Acontece que ela ficou quantitativamente grande, mas tornou-se qualitativamente heterodoxa. É uma Igreja que não influencia mais a sociedade, porque ficou menos coesa.

Hoje assistimos a uma explosão do chamado mercado gospel. A produção cultural evangélica tem influenciado “o mundo”, para usar uma expressão bem comum entre os crentes?
O problema da nossa produção cultural é que a gente entra no mercado não para alterar alguma coisa, mas seguindo os padrões vigentes de produção, de consumo, de estética – e, dizem as más línguas, de falcatrua. Isso é mais evidente em relação à chamada indústria de música gospel. Da mesma forma, com a chamada indústria evangélica de literatura. Há até indústria de testemunhos! Há algum tempo, os evangélicos achavam errado estar presente no mundo. Só que o grande problema não é a gente estar presente lá no mundo, mas seguir o mesmo padrão dominante. Transportando isso para a questão do comportamento social, não existe mais aquele perfil evangélico do indivíduo que não bebe, não fuma, não é desonesto e não faz coisas erradas. O evangélico de hoje não tem mais aquele carimbo de santidade na testa. Algumas vezes, faz coisas até piores do que os outros.

E o que dizer das qualidade da produção cultural evangélica?
Se a gente pegar algumas canções de louvor e adoração que são cantadas hoje, veremos que são muito rasas. Os caras escrevem umas quatro linhas que não dizem nada e ficam repetindo essa baboseira por meia hora. Isso é desonesto. Eu já ouvi músicas da nova safra gospel que considero um lixo. Não têm qualidade musical, não têm conteúdo, não têm letra, não têm arranjo, não têm estilo. É uma porcaria, com todas as letras. Também tenho lido livros evangélicos de ponta a ponta e no final não consigo entender o tema daquilo. O autor não diz nada e você fica com a sensação de que gastou dinheiro e não aprendeu nada. Ou então, no culto, o pregador fica 40 minutos dizendo absolutamente nada. Ou seja, uma mensagem vazia é tão desonesta qanto um CD ou um livro que não dizem nada. E ainda tem aquela coisa da fabricação de astros da música, de ídolos da literatura, de estrelas do púlpito. A gente vê isso nos livros, nos CDs, nos cultos, nos congressos... .

A teologia também é uma produção cultural?
Apesar dos teólogos sempre dizerem que teologia é uma revelação divina, a verdade é que ela é uma produção humana adequada ao seu tempo. Do ponto de vista sociológico, teologia é a legalização do estado social. Nesse sentido, a teologia da prosperidade jamais poderia fazer sucessso na década de 1920, quando ocorreu uma grande crise econômica do mundo. Não havia ambiente social nem cultural para isso. A teologia da prosperidade nasce junto com o neoliberalismo econômico. Quer dizer, ela junta a fome com a vontade de comer. Ou seja, as teologias são sempre produzidas de acordo com a época. A teologia da prosperidade nasce num processo de urbanização fundamental. Essa teologia não poderia ter nascido numa sociedade rural. Ela tinha que aparecer num mundo urbanizado com o de hoje, com demandas de consumo inimagináveis. A teologia da prosperidade legaliza essa classe média evangélica que se aburguesou. E isso não é um fenômeno exclusivamente contemporâneo. A teologia calvinista do século 17 surgiu como forma de legalização da burguesia ascendente da época. E assim por diante.

Então a teologia desses grupos é meramente utilitária?
Tanto quanto de outros grupos. O segmento neopentecostal tem uma ética relativista e uma estética muito consumista. Isso também tem uma teologia, conforme a tese que o sociólogo Ricardo Mariano elaborou sobre o neopentecostalismo, que relativizou a ética e se aproveitou da estética.

Onde mais se observam contextualizações sociais ou políticas na teologia protestante?
Para não ficarmos somente na teologia da prosperidade, veja o escatologismo exagerado do pentecostalismo nas primeiras décadas do século passado. Há uma razão histórica para explicar tamanha ênfase num eventual fim dos tempos. O pentecostalismo nasce na passagem do século 19 para o 20. Toda passagem de século tem uma efervescência escatológica muito forte. E logo nos anos seguintes, veio a Primeira Guerra Mundial, que trouxe uma mudança fundamental no processo bélico, que foi a inclusão dos aviões – uma tecnologia nova – em combates. Num panorama de destruição daqueles, a ênfase escatológica foi tão grande que os crentes pensavam que Jesus estava às portas, prestes a voltar a qualquer momento. Depois, veio a Segunda Guerra, trazendo mais destruição e ainda por cima a figura de Hitler, considerado por muitos como o próprio anticristo. Logo, tudo apontava para uma volta iminente de Cristo, e a teologia produzida na época refletia isso.

Falando em termos sociológicos, esse escatologismo levou os evangélicos à alienação?
Exatamente. O grande mal que essa teologia produziu foi uma alienação absoluta da realidade. Como as pessoas pensavam que Jesus já estava voltando, achavam que não deveriam mais ter nada a ver com este mundo. A teologia pentecostal, nos seus primeiros anos, e mesmo até hoje em alguns setores, levou os evangélicos a achar que só a vida espiritual deveria ser cuidada – e o mundo que se explodisse. O fato de se pensar somente em morar no céu produziu uma profunda alienação. Olha, eu tenho muitas reservas contra os dogmáticos de plantão, os donos da verdade teológica, que dizem que isso ou aquilo é pecado e está errado. Pode ser que não seja. Como eu não sou teólogo ou pastor, posso me dar ao luxo de relativizar. Como sociólogo, não tenho essa preocupação dogmática. E acho que os crentes em geral também não devem ter.

Marcos Stefano